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ANÁLISE

A anistia no Congresso Nacional e os limites constitucionais

Por Nazareno Fonteles

Sexta - 05/09/2025 às 21:18



Foto: Reprodução Congresso Nacional do Brasil
Congresso Nacional do Brasil

As recentes propostas legislativas que buscam anistiar agentes públicos por atos praticados em contextos políticos, ou por aqueles que atentam contra a própria ordem democrática, reacendem um dos debates mais sensíveis e cruciais do direito brasileiro: até onde pode ir o poder de perdoar do Estado? A questão central é determinar se o Congresso Nacional possui competência constitucional para anistiar crimes que violam direitos humanos fundamentais e, mais amplamente, se pode perdoar condutas que buscam subverter o próprio Estado Democrático de Direito. Este artigo analisará a inviabilidade de tais anistias, considerando o contexto histórico brasileiro pós-ditadura militar, a evolução jurisprudencial e doutrinária desde a promulgação da Constituição de 1988, e as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, com especial atenção aos ataques recentes à democracia.

A Lei de Anistia de 1979, editada ainda durante o regime militar, estabeleceu perdão recíproco para crimes políticos e conexos. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha mantido sua validade na ADPF 153 em 2010 – num contexto interpretativo complexo que buscou conciliar a lei com a transição democrática –, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil no caso "Gomes Lund vs. Brasil" (2010) por não investigar crimes de tortura e desaparecimento forçado, argumentando que a Lei de Anistia não poderia ser óbice à persecução de crimes de lesa-humanidade.

Desde 1988, a jurisprudência brasileira evoluiu significativamente. O STF passou a reconhecer a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade e a incorporar padrões internacionais de direitos humanos em diversas decisões, mesmo que não tenha revisitado formalmente o mérito da ADPF 153 em relação aos crimes da ditadura. Essa evolução torna ainda mais problemática e juridicamente insustentável qualquer tentativa de ampliar o escopo de anistias para violações de direitos humanos em períodos democráticos, e sobretudo para atos que buscam destruir a própria ordem constitucional.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu proteções materiais para valores essenciais à democracia que funcionam como verdadeiras cláusulas pétreas, algumas explícitas e outras implícitas.

O princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º, III, exige do Estado não apenas respeito formal aos direitos individuais, mas ação positiva para garantir justiça às vítimas de violações sistemáticas. Essa exigência se materializa em diversos dispositivos constitucionais que criam barreiras intransponíveis a anistias amplas. O artigo 5º, XLIII, da Constituição, por exemplo, equipara tortura a crimes hediondos, tornando-a insuscetível de anistia. A Lei dos Crimes Hediondos de 1990 reforça essa vedação absoluta. Qualquer medida que beneficie torturadores violaria não apenas dispositivos legais específicos, mas todo o projeto ético-jurídico construído após a ditadura.

Além disso, atos administrativos ilícitos não podem ser anistiados por lei ordinária, pois sua apuração integra obrigações funcionais irrevogáveis, conforme já decidiu o STF na ADI 2.027. A probidade administrativa constitui princípio constitucional autônomo que não pode ser relativizado por conveniências políticas momentâneas.

A inviolabilidade do Estado Democrático de Direito: Mais um limite à anistia

A tese da inconstitucionalidade da anistia se estende com ainda maior veemência aos crimes contra o próprio Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal é explícita ao blindar seus pilares. O Art. 60, § 4º, estabelece como cláusulas pétreas a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais. Atentar contra esses fundamentos não é apenas violar uma lei, mas atacar a própria essência da República.

Eventos como as tentativas de golpe de Estado e os atos violentos praticados em 8 de janeiro de 2023, e dias antes, representam uma afronta direta a essas cláusulas pétreas. Tais condutas não se enquadram na categoria de "crimes políticos" passíveis de anistia, mas sim como crimes que visam a abolição violenta do Estado Democrático de Direito e o Golpe de Estado, conforme tipificados na Lei nº 14.197/2021, que introduziu o Título XII na Parte Especial do Código Penal (Art. 359-L e Art. 359-M, entre outros).

Anistiar esses crimes significa:

Violar Cláusulas Pétreas Explícitas: Permite que atos que buscam destruir a separação de Poderes, o processo eleitoral legítimo e a própria existência do regime democrático sejam perdoados, esvaziando a proteção constitucional mais fundamental.

Contradizer a Vontade Legislativa: A criação de um capítulo específico no Código Penal para proteger o Estado Democrático de Direito demonstra uma clara vontade do legislador em coibir e punir condutas antidemocráticas. Uma anistia seria uma contradição flagrante com o espírito da lei.

Comprometer o Dever Estatal de Proteção da Democracia: O Estado tem o dever constitucional de proteger a democracia. A inércia ou o perdão a quem atenta contra ela pode configurar, por omissão, uma violação desse dever fundamental, estimulando a impunidade e a reincidência.

A atuação do Supremo Tribunal Federal, nas investigações e julgamentos dos eventos de 8 de janeiro de 2023 e de outras condutas antidemocráticas, tem demonstrado uma clara posição contra a impunidade, reforçando a gravidade desses crimes e a necessidade de responsabilização para a proteção das instituições.

Refutando os argumentos pró-anistia

Defensores das propostas anistiadoras apresentam três argumentos principais que merecem análise cuidadosa, mas que se revelam frágeis diante do arcabouço constitucional e internacional:

"Processos prolongados reabrem feridas históricas desnecessariamente, prejudicando a pacificação social."Contudo, estudos comparativos da Comissão Nacional da Verdade demonstram que países que priorizaram o esquecimento institucional apresentaram taxas de reincidência autoritária mais elevadas. A experiência da África do Sul, com sua Comissão da Verdade e Reconciliação, mostra que a transparência, a verdade e a justiça – não o esquecimento – promovem pacificação duradoura e genuína. Quando se trata de ataques à democracia, anistiar os responsáveis não pacifica, mas sim encoraja a repetição, sinalizando que a subversão da ordem democrática pode ser tolerada.

"A estabilidade nas relações jurídicas seria valor superior à justiça retributiva." Essa tese ignora que segurança jurídica protege direitos adquiridos das vítimas tanto quanto dos acusados. Crimes graves contra os direitos humanos e, sobretudo, contra o Estado Democrático de Direito não geram direito subjetivo ao esquecimento. O princípio da confiança legítima protege as expectativas das vítimas de ver cumpridas as promessas constitucionais de justiça. A verdadeira estabilidade jurídica se assenta no respeito irrestrito à Constituição e na punição daqueles que a violam, não na impunidade que enfraquece o próprio sistema legal.

"O Congresso teria ampla discricionariedade para regular matéria penal com base na soberania legislativa."Essa visão desconsidera que o poder constituinte derivado não pode revogar cláusulas pétreas (explícitas ou implícitas) sem ferir o núcleo essencial da democracia. A soberania nacional encontra limites nos compromissos internacionais assumidos voluntariamente pelo Estado brasileiro e nos princípios fundamentais que estruturam nossa ordem constitucional. Para além disso, o respeito ao poder do Congresso não pode ser invocado para justificar a anistia de atos que visam justamente abolir o sistema que o próprio Congresso representa.

A nossa análise demonstra uma incompatibilidade fundamental entre as propostas anistiadoras e os pilares essenciais da ordem constitucional vigente, seja no que tange à proteção dos direitos humanos ou à salvaguarda do próprio Estado Democrático de Direito. Mais grave: sua eventual aprovação colocaria o Brasil em rota de colisão com obrigações internacionais assumidas após a redemocratização e comprometeria severamente a estabilidade e a credibilidade de suas instituições.

A construção de uma democracia sólida exige responsabilização integral, não esquecimento institucional. Como demonstra a experiência internacional, apenas através da transparência, da justiça e da firmeza na defesa da ordem constitucional constrói-se um legado democrático capaz de superar ciclos de autoritarismo e de ataques à sua própria existência. Perdoar violações sistemáticas de direitos humanos ou atos que buscam derrubar o regime democrático significa, em última análise, trair o compromisso constitucional com as futuras gerações. O caminho não é o esquecimento, mas o aperfeiçoamento dos mecanismos de responsabilização dentro dos marcos constitucionais e internacionais que o Brasil voluntariamente assumiu.

SOBRE O AUTOR

SOBRE O AUTOR

José Nazareno Cardeal Fonteles é graduado em Medicina e Matemática. Fez residência médica em Ortopedia e Traumatologia e mestrado em Matemática. Atuou como ortopedista no HGV, na Casamater e nas clínicas Cot e Copil. É professor aposentado da UFPI. Exerceu mandatos de vereador, deputado estadual e de deputado federal. Fundou e presidiu por sete anos a Frente Parlamentar da Segurança Alimentar e Nutrcional do Congresso Nacional. Foi secretário de saúde do Piauí. Participa da direção do grupo educacional CEV. É casado com Nereida, pai de Deborah, Danielle e Rafael e avô de sete netos. Tem fé em Jesus de Nazaré, o Mestre do Amor Gratuito. Instagram do autor
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