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Conheça o Projeto Corisco, iniciativa que estuda vestígios humanos da Serra da Capivara

Grupo de pesquisadores estuda artefatos líticos encontrados na Serra da Capivara e se dedica à reincorporação científica de materiais arqueológicos de procedência incerta ou desconhecida

Da Redação

Quarta - 23/04/2025 às 09:28



Foto: Divulgação Marcellus de Almeida observando fraturas naturais nos seixos do conglomerado nas proximidades do sítio Toca do Meio
Marcellus de Almeida observando fraturas naturais nos seixos do conglomerado nas proximidades do sítio Toca do Meio

Movidos pelo desejo de colocar em prática reflexões e questionamentos que vinham desenvolvendo ao longo de anos de pesquisa, os pesquisadores Me. Marcellus de Almeida e Dr. Antonio Pérez-Balarezo criaram o Projeto Corisco, uma iniciativa independente que investiga os vestígios humanos mais antigos das Américas, em especial os localizados no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí.

Além disso, o grupo também se dedica à reincorporação científica de materiais arqueológicos denominados "sem contexto", ou seja, peças cuja procedência é incerta ou desconhecida.

O Projeto Corisco também conta com a colaboração de diversos pesquisadores como o Prof. Dr. Ignacio Clemente Conte, renomado traceólogo espanhol, o Prof. Dr. Mario Pino, geocientista e geomorfólogo chileno, a doutoranda Marina González-Varas, especialista em produção lítica unifacial no contexto sul-americano e o Dr. Antoine Muller, especialista em evolução da tecnologia lítica.

O Piauí Hoje conversou com o pesquisador Marcellus de Almeida, que explicou um pouco sobre o projeto.

Para começar: o que significam os termos "tecnologia lítica", "indústrias líticas", "pedra lascada", "tecnologia da pedra lascada", "artefato lítico"

As indústrias líticas pré-históricas representam os primeiros vestígios da humanidade. São as primeiras marcas de transformação humana de uma matéria prima natural, neste caso rochosa, em instrumentos. O termo "lítico" vem do grego lithos que significa "pedra", "de pedra".

Embora exista uma ampla variedade de matérias primas (peles, ossos, madeira, fibras vegetais, frutos, etc.) usadas pelos primeiros hominídeos, as mais duráveis e resistentes, e quase indestrutíveis, são aquelas feitas a partir das rochas. As rochas, ou parte delas, que foram transformadas por ação humana são denominadas "artefatos líticos".

Em uma divisão simplificada dos artefatos líticos lascados, podemos elencar as ferramentas, os núcleos e as lascas. As ferramentas são os objetivos, são a razão pela qual os grupos na Pré-História lascavam a pedra; através do lascamento eles fabricavam suas facas, serras, e assim por diante. Os núcleos são a porção de matéria prima da qual os artesãos pré-históricos retiraram lascas para produzirem ferramentas ou não.

Existe também um grupo de ferramentas líticas não lascadas, por exemplo: pilões, percutores e lâminas de machado polidas. Os percutores são, em geral, seixos usados para o lascamento de núcleos e lascas. Já as lâminas de machado de pedra polidas incorporam outros processos para transformação da massa lítica, que são o alisamento e polimento.

  • Indústria: é o conjunto de atividades econômicas que têm por fim a manipulação e exploração de matérias-primas e fontes energéticas, bem como a transformação de produtos semiacabados em bens de produção ou de consumo.
  • Tecnologia: estudo sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana. Neste caso, "tecnologia lítica".
  • Antonio Pérez-Balarezo analisando peças do sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada

Quais são os objetivos do Projeto Corisco?

O Projeto Corisco foi concebido para enfrentar duas questões bastante distintas entre si, mas que compartilham um elemento central: o descrédito ou, ao menos, uma certa desconfiança - por parte tanto da Academia quanto do público em geral.

A primeira delas consiste na investigação dos vestígios humanos mais antigos das Américas, os conjuntos líticos pleistocênicos do icônico (e polêmico) sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, por meio de três abordagens analiticas complementares: tecnologia lítica, tafonomia e traceologia. Cada uma dessas perspectivas oferece subsídios interpretativos distintos, atuando em níveis e dimensões específicas da análise arqueológica.

A abordagem tecnológica busca compreender como os artefatos líticos foram produzidos: quantos gestos e etapas foram necessários, qual foi a lógica de sua organização técnica e quais os objetivos envolvidos na sua transformação.

A traceologia, por sua vez, visa identificar como os instrumentos foram utilizados se para raspar, cortar, perfurar, entre outras funções, e em que tipos de materiais foram aplicados, como pele, carne, madeira etc. Essa análise é realizada por meio da observação de estigmas de uso visíveis tanto em macro quanto em microscopia.

Por fim, a perspectiva tafonômica permite reconstituir a história total dos artefatos, isto é, as transformações sofridas ao longo do tempo em decorrência da ação de agentes naturais ou de atividades humanas não intencionais.

A segunda questão do projeto refere-se à reincorporação científica de materiais arqueológicos denominados "sem contexto" peças cuja procedência é incerta ou desconhecida. Esses artefatos, muitas vezes conservados em museus, coleções particulares ou centros de pesquisa, não foram escavados segundo protocolos arqueológicos sistematizados, o que compromete seu uso tradicional. No entanto, por meio de novas metodologias analíticas, é possível reintegrá-los ao debate científico, valorizando seu potencial informativo e simbólico.

O último trabalho publicado do Projeto Corisco

O último trabalho publicado pelo Projeto é intitulado A Biface in the Land of Unifaces: Technological Aspects of an Extraordinary Artifact from Northeastern Brazil, foi publicado pela revista Lithic Technology, da editora Taylor & Francis, cuja sede está localizada no Reino Unido. Nele, os pesquisadores revelam os aspectos de produção e de utilização de um instrumento bifacial, que salvo pelas pontas de projétil e lança, é pouco frequente na literatura arqueológica da região Nordeste.

A compreensão de como a peça foi produzida depende do olhar treinado do arqueólogo para fazer a leitura adequada dos estigmas de lascamento e das intenções do indivíduo pré-histórico. Essa "tradução" acontece quando dispomos as orientações dos negativos de cada retirada, se são lascamentos isolados ou compõem uma etapa de vários lascamentos, como vemos no esquema acima. 

No segundo momento, são investigadas as consequências morfológicas e volumétricas, bem como características angulares da relação entre a face superior e a face inferior. Por fim, esse conjunto de características e fases de transformação da matéria litica são interpretados segundo duas perspectivas, uma de produção, de como foi o instrumento foi confeccionado, e outra funcional, tentando definir as partes receptiva, preensiva e transformativa do instrumento. É como se pudéssemos ler através da pedra a cabeça de um artesão que viveu há 5, 10, 20 mil anos.

A peça descrita no trabalho é proveniente de um conjunto de artefatos liticos de um colecionador, doado à Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) em 2017, e, portanto, não possui relação com outras peças, sítios da região nem local de origem. É importante reforçar que é crime a coleta de materiais arqueológicos, e que os materiais não têm um valor intrínseco, mas é através do estudo, da associação com outros materiais, outros vestígios arqueológicos, no local preciso da paisagem em que foi encontrado, e de um mapeamento e registros minuciosos que poderemos compreendê-los plenamente. 

Caso uma peça ou sitio arqueológico seja identificado, é fundamental entrar em contato com um arqueólogo ou notificar a Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para que sejam adotadas as providências legais e técnicas cabíveis. A reintegração de artefatos "sem contexto" como elementos informativos relevantes deve vir sempre acompanhada de um alerta claro, que é imprescindível desencorajar, de forma rigorosa, a formação de coleções privadas, a troca e o comércio de materiais arqueológicos, bem como a destruição de sítios arqueológicos.

Fonte: Projeto Corisco

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