O Brasil testemunhou recentemente — e uma parte preocupante apenas observou — a brutalidade cometida contra a jovem Tainara, arrastada por um quilômetro pelo ex-companheiro, Douglas Alves da Silva. Nomear o agressor não é detalhe; é recusar o apagamento social que costuma proteger esses homens. O crime, filmado e difundido como se fosse mais uma tragédia banal, escancara o que as estatísticas vêm martelando há anos: a vida das mulheres continua sendo tratada como descartável.
E, justamente quando o país encara tamanha crueldade, surge da ministra do Superior Tribunal de Justiça - STJ, Marluce Caldas, uma decisão que exige “provas concretas” para condenações na Lei Maria da Penha, colocando em dúvida a palavra da vítima. O paradoxo não poderia ser mais gritante.
A violência contra a mulher quase nunca começa diante de câmeras; ela se infiltra, silenciosa, no cotidiano, nos gestos que não deixam marcas aparentes, nos silenciamentos que se acumulam até o momento extremo. Casos como o de Tainara, ou o de Isabele e seus quatro filhos queimados, não são exceções: são o resultado final de violências contínuas e naturalizadas.
Quem denuncia já chegou ao limite. Antes disso, enfrentou um tribunal interno — aquele que indaga se vale a pena romper a família, que antecipa a vergonha, a culpa, o descrédito. A pergunta que alguém, cedo ou tarde, fará ecoa como sentença:
“A senhora tem certeza de que ele fez isso?”
E é inquietante perceber que essa pergunta, antiga e cruel, reaparece agora mascarada de tecnicismo jurídico.
A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher / DataSenado confirma o que sentimos no ar:
–79% das mulheres acreditam que a violência aumentou;
– 70% dizem viver em um país machista.
Vivemos em uma estrutura social que não foi desenhada para a autonomia das mulheres. Somos ensinadas a suportar, a “tentar mais um pouco”, a aceitar o mínimo. Quando finalmente rompemos o silêncio, ainda nos pedem provas de que a dor é verdadeira.
Mas como provar o que se passa entre quatro paredes? Como validar perante um tribunal a palavra de quem viveu anos sendo manipulada, isolada, desacreditada? Não à toa, 30% das mulheres afirmam que estavam sozinhas no momento da agressão. A solidão é parte da engrenagem da violência; ela favorece o agressor e alimenta o descrédito.
A Lei Maria da Penha nasceu exatamente para romper essa lógica: ela afirma que a palavra da mulher tem valor probatório inicial porque reconhece a natureza íntima, silenciosa e progressiva da violência. Ela não é apenas uma lei; é um instrumento pedagógico que empurra o Estado para o seu dever de proteger.
Mas uma lei não se sustenta sem acesso e sem serviços. E os números assombram:
– 67% das brasileiras não conhecem a Lei Maria da Penha;
– 48% acham que ela protege apenas parcialmente.
Essa “parte que falta” não está na lei; está no Estado. Falta capilaridade, falta acolhimento, faltam políticas públicas. Falta compreensão de que uma mulher em ruptura precisa de rede de apoio, não de julgamento moral.
A pesquisa mostra que 93% procuram a DEAM. É um passo importante, mas é só o primeiro. O momento mais crítico é o depois — quando a denúncia já foi feita, o agressor está ciente, e a mulher precisa de acompanhamento psicológico, suporte financeiro e cuidados contínuos para não retornar ao ciclo violento.
E como exigir “provas concretas” quando 88% das violências relatadas são psicológicas — exatamente aquele tipo de violência que não deixa hematomas, mas corrói por dentro? A manipulação emocional não apenas destrói autoestima; destrói credibilidade. Quem resistiu anos sendo chamada de louca, exagerada, sensível demais, chega à delegacia com a própria voz já ferida.
A palavra da mulher não é acessório na Lei Maria da Penha — é alicerce. Retirá-la é esvaziar a proteção, é retroceder.
O cenário que se desenha hoje não é apenas jurídico; é simbólico. Uma decisão que desconfia da palavra da vítima reverbera muito além dos tribunais: repercute nos lares, nas vizinhanças, nas salas de espera das delegacias. Ela diz, implicitamente, que a mulher precisa provar o que vive — e sabemos que essa exigência, em muitos casos, é impossível.
Não se trata de enfraquecer apenas a lei. Trata-se de enfraquecer as mulheres.
Tainara, Isabele e tantas outras têm seus nomes transformados em estatística. A pergunta é: até quando vamos permitir que o Estado responda a essa realidade com dúvidas, em vez de proteção?
A violência contra a mulher é estrutural; não será interrompida com decisões que desconsideram sua dinâmica. O país precisa de coragem política, políticas integradas e compromisso real com a vida das mulheres — não retrocessos camuflados de rigor técnico.
A palavra da mulher nunca foi o problema. O problema sempre foi quem insiste em não ouvi-la.

(*) Ana Cleide Nascimento (foto acima) é assistente social, militante do movimento feminista, coordenadora do coletivo mulheres da guia, diretora de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da SEMPI.