Proa & Prosa

Proa & Prosa

PROA & PROSA

Na doce colina...

Na procissão dos Passos de 2023, as cenas da tradição se sucederam na forma e conteúdo

Fonseca Neto

Quarta - 19/04/2023 às 21:35



Foto: Divulgação Procissão em oeiras
Procissão em oeiras

“Ali do Rosário, na doce colina...”.

Um dos mais significativos entre os marcos das tradições oeirenses do Piauí é a Procissão de Bom Jesus dos Passos, todo ano, na sexta-feira que antecede a Semana Santas. A “Sexta de Passos”, como ali se diz, para distinguir da sexta da Paixão.

Essa procissão – a mais “concorrida” do Piauí – tem sua concentração na igreja do Rosário, na assentada de uma colina leve que se alevanta num ponto sul da antiga cidade, habitada por trabalhadores negros desde a origem do lugar: “doce colina”!

A imagem é levada para esse lugar na noite anterior, fica sob a vigília de devotos à espera da sexta à tarde, quando sai e desce em direção à igreja da Vitória. A representação da verdadeira via sacra dos passos do Galileu Nazareno.

Essa tradição de catolicismo popular vem do tempo dos padres fundadores da cidade, implantando no coração dos sertões do Piauí a primeira paróquia. Com paroquianos, muitos, oriundos da ilha dos Açores, tal era a política do Estado português, então, para estes desvãos de já muitas tranqueiras fincadas.

Ora, as manifestações católicas açorianas puxam por tradições e ritos muito liturgicamente característicos, no caso das celebrações quaresmais, assim como as da Festa do Divino.

Na procissão dos Passos de 2023, as cenas da tradição se sucederam na forma e conteúdo, até por que os fiéis católicos de lá são vigilantes contra certas novidades e modismos sem propósitos fundados.

Anote-se esta observação hegeliana sobre a Tradição: “... não é uma estátua imóvel, mas vive e mana como um rio impetuoso que mais cresce quanto mais se afasta da origem. [O] que cada geração produziu no campo da ciência e do espírito é uma herança para a qual todo mundo anterior contribuiu com sua economia... É um santuário em cujas paredes os homens de todas as estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o que os auxiliou na vida, o que eles hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao mesmo tempo, receber a herança e fazê-la frutificar”. Citação que vemos em N. Abbagnano, que a entende nas forjas do romantismo, acrescentando que “a Tradição é apenas outro nome para designar o plano providencial da história”.

O que esse palavrório contribui para pensar Oeiras e seu manancial de tradições? No sentido apontado – que nega ser a tradição “a verdade”, pétrea –, ajuda compreender que as heranças trazidas não são pontos de imutabilidade que o ontem plantou no hoje. Não há imutabilidade. A tradição não deve ser um convidar ao retorno. Daí que Hegel a “liberta de seus elementos míticos”, no antepassado, a própria substância dela.

Neste ano houve a romaria de devotados a Oeiras para a imergir nos signos manifestos da tradição da Sexta de Passos. Uma pretensão de volta no tempo? Talvez no “espírito” de alguns, mas irrealizável. De fato, foram fazer “de novo”, isto é, foram fazer nova recordação da Paixão, da via dolorosa do Gólgota, movidos por uma lembrança reverente.

A procissão tem idêntico roteiro há pelo menos 15 décadas; imagens sacras, as mesmas; vestes e estandartes, roxos, e luzeiros e andores em mãos de famílias que passam a “função” de geração a geração; capelas bicentenárias ao longo da via processional... E a beleza da “Flor de Passo”, que Dagoberto Jr. lembra que compõe “a heráldica da terra, da cidade também”.

Assim Oeiras se comunica com seu passado, desnuda sua história no meio da praça, elabora o presente, sugere as narrativas do futuro; será outra a cidadela conga na doce colina? Vitória sobre quem?      

No Encontro da procissão deste ano, sermonou presencialmente para 30 mil pessoas o arcebispo emérito de Teresina, Dom Jacinto Brito. Lembrou aos passeiros, que aquela caminhada pelas ruas monumentais de Oeiras, tão velhas, históricas, não deve abater o espírito de ninguém ante a lembrança dos “dias dolorosos”. Antes há de acender as tarefas de cada um na condução do presente. E lembrou o quanto é atual resolver o estado de fome de milhões, que a Quaresma está clamando neste 23.

Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
Siga nas redes sociais

Compartilhe essa notícia: