Proa & Prosa

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Escravizados no sertão

Pois o comércio de carne humana (D. Ribeiro) foi a primeira atividade que se deu nesta “nesga de sertão” e beiras orientais do rio Punaré, logo depois chamadas de Piauí.

Fonseca Neto

Sábado - 30/07/2022 às 22:01



Foto: Divulgação Escravo
Escravo

Muito mais que mero simbolismo, tem bastante significado histórico, o primeiro ato econômico acontecido no que seria depois o Piauí: a pega e preação de pessoas nativas para a venda num mercado interno escraveiro.

Não se deva esquecer: o objetivo da expansão invasora, marcada pelo Quinhentos –, que organiza, por exemplo, a chamada “América Portuguesa” –, é obter ganhos com qualquer coisa que dela se faça mercadoria.  

Não deu outra: já na baía da chegada, naquele final de abril de 1500, sem ventura alguma, o corpo dos filhos da humanidade original deste lado do Atlântico, ali mesmo, foi eleito para futuro comércio, peça de uso mercantil de real valor. O invasor mais que a tudo documentou.

Pois o comércio de carne humana (D. Ribeiro) foi a primeira atividade que se deu nesta “nesga de sertão” e beiras orientais do rio Punaré, logo depois chamadas de Piauí. E o gado e as lavras? Vêm juntos e não são incompatíveis quando se pensa nas fantasiadas entradas e bandeiras.

Escravidão: marca ou espécie de pecado original a mover a vida social piauiense desde o primeiro minuto. Sabe-se como tudo isso se deu? Relativamente. Quando o assunto escravidão começou a ser objeto de estudos mais cientificamente pesquisados e difundidos na seara piauiense, eis que outros modismos historiográficos se impuseram.

Desse tempo de bom prodígio temático sobre a escravidão, um valioso contributo, feito pela historiadora-doutora Miridan Bugyja Britto Falci, publicado em 1995: Escravos do Sertão – demografia, trabalho e relações sociais. Um mergulho no mundo-cativeiro do Piauí na altura do século XIX.  

Logo esse estudo se tornou referência reiterada na temática da escravidão, dentro e fora do Brasil. No Piauí, marco irrecusável. Com foco metodológico no Piauí oitocentista – já se disse –, Miridan revisitou a historiografia então dada sobre o assunto, propondo uma e outra reescritas. Odilon Nunes, Luiz Mott, Padre Chaves, tiveram sua contribuição recepcionada e o convite ao diálogo dos pares.  

Escravos do Sertão, uma generalidade temática? Claro que não – o texto é de uma tese doutoral, publicada sem abreviações mutiladoras do texto original. No plano subtitular apontado, organiza o livro em 3 partes, subdivididos em capítulos, intercambiados.

“Como chegar no interior desse grupo humano? Como conhecer a dinâmica dessa população? Como auscultar seus ritmos vitais? Suas estruturas familiares? Suas estratégias de sobrevivência?” São perguntas de pesquisa que a autora faz, e as respostas, não-absolutas, são o corpo do trabalho, em si revelador da fartura de fontes secundárias que trouxe ao palco temático. Revelador, ainda mais, da largueza e vigor do mergulho nas fontes primárias dos arquivos do Piauí. Acervos, em regra, virgens, tratando-se de estudos demográficos mais refinados, pesquisa sobre o mundo do trabalho, e quanto à engenharia das tessituras sociais do Piauí histórico.

O estudo ajuda superar a simplificação do disse-me-disse historiográfico de que “no Piauí a escravidão fora atenuada...”. São cuidadosamente examinados pela autora, além desse, outros desenvolvimentos historiográficos sobre a escravidão no contexto da pecuária, muito assentada nos referentes anteriores atinentes à formação social do Piauí.  

Falci confere bases consistentes para qualificar essa “questão”, desde então – tirante os apelos regressistas de agora –, parece ninguém mais deu bolas ao “debate” nessa linha. Eis uma contribuição valorosa do livro, que, com muita satisfação, dele agora falamos, para dizer que acaba de sair uma 2ª edição, por editora do RJ – a primeira fora feita pela Prefeitura de Teresina, no tempo de Wall-Elmar.

Miridan é uma piauiense nascida no Rio de Janeiro. De raiz oeirense, terra de seu pai Bugyja Britto. É professora da rede federal de ensino superior. Lavrou essa temática sobre o Piauí – além de outras –, com a metódica científica e o pulsar da energia acendrada de sua alma piauizeira. É grande madrinha quando se trata de IHGB, no que continua servindo à Historiografia.

Fonseca Neto

Fonseca Neto

FONSECA NETO, professor, articulista, advogado. Maranhense por natural e piauiense por querer de legítima lei. Formação acadêmica em História, Direito e Ciências Sociais. Doutorado em Políticas Públicas. Da Academia Piauiense de Letras, na Cadeira 1. Das Academias de Passagem Franca e Pastos Bons. Do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
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