A história do Brasil, e do Piauí em particular, não é um arquivo morto. Ela se repete e se reinventa em um ciclo perturbador. As recentes mortes em desastrada operação policial no Rio de Janeiro mostram que estamos vivendo a era do Novo Cangaço: o Cangaço Político. Se outrora Lampião e seu bando desafiavam o poder estabelecido pelas caatingas, o novo cangaço opera dentro dos próprios palácios do poder. Seus integrantes não usam chapéus de couro nem carregam rifles Parabellum, mas trajam ternos finos e portam smartphones.
Em todo o país, herdeiros de coronéis e velhas raposas da política comandam uma nova versão, sem limites, do cangaço eleitoral no estado. Eles utilizam-se de modernos e sofisticados meios de persuasão para a conquista, manutenção e dominação da cena política em suas mãos. O instrumento é o familismo consanguíneo, e a moeda de troca, lealdades de "capangas" que se agregam por razões não republicanas; são operadores fiéis que cuidam das finanças e de outras ações não muito éticas.
Longe de serem combatidos, estes agentes se uniram em um grupo simbiótico e poderoso. Nele, não se encontra unidade ideológica ou programática, mas um fisiologismo forjado no pragmatismo que não tem como foco o bem comum, mas o bem do núcleo familiar para a perpetuação no poder. O mais alarmante? Essa tendência contaminou até o espectro da esquerda.
As oligarquias, como instituições políticas tradicionais de longa duração, estruturam-se numa contínua metamorfose. Elas se recompõe como uma hidra da qual se corta uma cabeça e dela surgem várias outras, mais vorazes e insaciáveis. A sede não é apenas por poder político, mas, sobretudo, por poder econômico para aumentar patrimônios que, frequentemente, não resistiriam a uma investigação ou auditoria independente. Basta uma comparação histórica entre ganhos salariais reais e o aumento de patrimônio concomitante para levantar sérias suspeitas.
Este novo cangaço não tem limites na pilhagem dos recursos estatais. Não respeita idade, não respeita território e muito menos os interesses da população. Sua meta não é o ouro de lugarejos, mas o controle absoluto do erário, das nomeações e do processo legislativo, numa teia fechada. É um cangaço de gabinete, onde as negociações são as armas e as emendas parlamentares, o saque. Um sistema de "modocontínuo" autônomo que se autoalimenta.
Não precisa ser um gênio para identificar essa realidade. Basta olhar para os nomes dos novos donos dos votos pelo interior. A metáfora do cangaço aplica-se com precisão assustadora. Assim como os bandos de antigamente perambulavam pelo sertão, esses grupos políticos navegam por diferentes esferas de poder: prefeituras, assembleias legislativas, Câmara Federal, governos estaduais, governo federa e Senado.
Para assegurar mais poder e impunidade, à salvo de investigação, impõem nas cortes de contas a segurança e o amparo familiar. A "volante" da Justiça, por vezes, age, como visto em operações recentes, mas a estrutura resiste, adapta-se e persiste, repetindo o mesmo modus operandi, agora mais sofisticado com o uso de novas tecnologias da informação para manipular situações favoráveis ao grupo.
Continuamos na mesma situação na qual José Murilo de Carvalho escreveu "Os Bestializados" ao tratar da República. As pessoas comuns permanecem a face oculta do nosso modernismo: alheias e atônitas, buscando perdidamente uma cidadania supostamente conquistada.
A prova mais evidente dessa continuidade está na própria composição da política estadual. Um olhar rápido sobre a cena piauiense revela sobrenomes que são tradição há décadas. São filhos, netos e afilhados políticos que herdaram não apenas o nome, mas o modus operandi e os currais eleitorais. Eles não dependem mais de um único "coronel" patriarcal; operam como uma rede, um bando com vários "líderes".
Enquanto o Piauí luta por desenvolvimento, educação, saúde e inclusão, o Novo Cangaço Político segue sua pilhagem silenciosa. Eles não assaltam comboios, mas desviam verbas públicas. Não invadem cidades, mas ocupam cargos-chave com consanguíneos ou apadrinhados. O grito de "abençoado seja Deus" foi substituído por discursos vazios e genéricos em praça pública e acordos espúrios nos bastidores.
No Piauí, por exemplo, quatro troncos familiares se consolidaram com a presença de seus representantes consanguíneos nas três esferas e instâncias de poder: prefeituras, câmaras municipais, assembleia legislativa, governo do estado, Câmara e Senado. E, como se não bastasse, ocuparam os espaços dos órgãos de controle que, a princípio, deveriam ser independentes.
Nota-se que outros sobrenomes estão nos casulos, prontos para eclodirem nas próximas eleições. Enquanto a sociedade permanece bestializada, mudam-se os sobrenomes para permanecer incólume a velha estrutura: a oligarquia. Por outro lado, nos últimos anos tem sido notada a presença cada vez mais frequente do crime organizado infiltrado diretamente ou como financiador desse novo cangaço.
A luta contra esse novo cangaço é, talvez, mais difícil do que a travada contra Lampião e seus bandos. Não se vê o inimigo claramente, e ele usa a própria estrutura do Estado como trincheira. São "de terno, gravata e capital, que nunca se dão mal", como o "malandro" de Chico Buarque, com regalias e penduricalhos moral e eticamente condenáveis que nenhum outro servidor público tem.
Cabe à sociedade, armada com o voto e a vigilância constante, fazer o papel da volante moderna, exigindo transparência e cobrando resultados. Está na hora de um basta a esse Novo Cangaço Político e de se pôr um fim à metamorfose ambulante das oligarquias. O saque ao Estado precisa ter um fim.
Fileiras de mortos no Rio de Janeiro é resultado do cangaço político. Mas, nesse caso, volante e cangaceiros estão do mesmo lado
(*) Roberto John é cientista político, professor aposentado da UFPI e autor de estudo sobre as oligarquias do Piauí
Luiz Brandão
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